Texto escrito por Fabrina Martinez
[sobre a maternidade e ser mulher como subtextos de O Exorcista]
ninguém: a
eu:
já que estamos todos falando de mulher e maternidade, talvez seja o momento de falar sobre o melhor filme já feito sobre maternidade e ser mulher. O Exorcista foi filmado em 1973 e conta a história de Reagan, uma garota de 12 anos que é possuída pelo demônio e de como Chris, sua mãe, recorre ao pai ausente, aos amigos, aos funcionários, aos médicos e, enfim, aos padres para salvar sua filha.
Filmes são obras complexas e, por pior que sejam e o que não é esse o caso, tem um subtexto. Filmes de terror falam do comportamento humano. Assim como Walking Dead não é sobre zumbis, O Exorcista não é sobre o demônio. É sobre mulheres e maternidade.
Uma mulher bem-sucedida, que cuida da filha sozinha, que demonstra felicidade e que tem a audácia de cobrar a presença do pai ausente na criação não é uma pessoa respeitável socialmente. Eu sei disso, você sabe disso, todo mundo sabe disso. Nós sabemos os papéis que devemos exercer na vida e na sociedade e Chris não é nada disso. No resumo, é um mulherão da porra.
Mas Reagan cresce, ela é uma pré-adolescente no início no filme e, pouco antes de ser possuída pelo demônio, vemos Chris cobrando que o pai de sua filha seja mais presente. Seja fisicamente ou com um telefonema. A cena termina com ela dizendo "não me diz para ter calma". Alguém se reconhece nessa frase? Reagan ouve do quarto e deita em silêncio. Pouco antes, ela questiona o relacionamento da mãe com um amigo. "Você gosta dele? Você vai se casar com ele?". Aqui ela começa a dar os sinais de possessão.
É interessante pensar na forma como o demônio se expressa. Reagan muda de dócil para rebelde. Ela troca a docilidade da voz por grunhidos e palavrões e troca as brincadeiras por silêncio. Ela está sempre trancada no quarto. O sexo sempre aparece de forma perturbadora, como na cena do crucifixo. É Reagan que se masturba ou o demônio que a estupra? Ainda hoje, nos tempos em que vivemos, podemos falar sobre como nós tocamos o nosso corpo? Nós podemos dizer que tocamos o nosso corpo?
Mas existem duas coisas que são bem significativas. O processo desgastante que Chris passa para que as pessoas se disponham a olhar por ela e pela filha. Boa parte do filme é ela vagando em busca de ajuda. Todo entorno vai de mal a pior, mas o desespero de Chris, por si só, não tem valor. Afinal, o que uma mulher saberia sobre sua filha? O que uma mulher saberia sobre outra mulher? Ela sempre ouve respostas evasivas de homens. Sejam eles médicos, sejam eles padres. A sanidade de Chris e de Reagan está sendo questionada a todo momento. Tanto que o primeiro diagnóstico é uma disfunção de nervos e o médico receita 10mg de um estimulante ao dia. Logo depois, o médico diz que Reagan praguejou dizendo que era pra ele manter as drogas do dedo dele longe da vagina dela.
O médico gagueja diante da palavra vagina, a mãe de Reagan chora e a vida segue.
Mas elas são salvas. Por um padre que passa por uma crise de consciência depois de se mudar de cidade, deixando a mãe para trás. Ela morre sozinha num asilo. Ele é padre, psiquiatra e não tem como pagar por um hospital para a mãe. Ele desabafa esmurrando um saco de areia e procura por redenção salvando a vida de Reagan. Ele se torna o repositório do demônio e permite que a menina viva. Obrigada, padre Damien. Aqui seu biscoito.
Cena a cena podemos falar sobre ser mãe solo ou ser mulher, em qualquer estágio, é vagar de pessoa a pessoa buscando qualquer tipo de entendimento. Seja do nosso corpo, seja das nossas angústias, das nossas limitações. O que aprendi sendo mulher é que se eu não estiver no meu limite físico e emocional, não existe empatia ou suporte. Primeiro nos levam a um lugar muito além do nosso limite para então ouvirmos “vish”. Quando Reagan finalmente questiona "mãe, o que está acontecendo comigo?", a mãe repete "é como o médico disse. são só os nervos. tome seu remédio e fica tudo bem".
A cena termina com a mãe pulando na cama e tentando fazer com que ela pare de tremer. O fato é que ela nunca para. Por mais que a gente pule, grite, sangre, não muda. Eventualmente aparece um cara que está disposto a receber o demônio e pular da janela. Não raro, o homem expressa seu amor se sacrificando. O que é isso se não um jeitinho mais elaborado e poético de sair de cena e deixar as pessoas por sua conta e risco. O cansaço e desespero de Chris e a possessão de Reagan são excelentes metáforas sobre a condição da mulher em nossa sociedade. O demônio é uma analogia que está aí desde sempre. E pelo cenário atual, ainda deve durar muito.
P.S.: me avisem se um dia sair um filme melhor que esse.
Fabrina Martinez evita sair de casa e detesta ser sagitariana porque quando sai é extremamente falante e presente no rolê. Fez primeira comunhão, nunca crismou e está a receber demônios desde 1978.
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