#160 Cemitério Maldito (1989)

Cemitério Maldito

EUA – 1989 colorido 103 minutos

Direção: Mary Lambert

Roteiro: Stephen King

Elenco: Denise Crosby, Dale Midkiff, Fred Gwynne, Blaze Berdahl, Miko Hughes, Brad Greenquist e Susan Blommaert, entre outros e outras

“Fiquei surpresa quando soube que o meu nome estava sendo cogitado para dirigir um filme de terror num grande estúdio, cujo roteiro estava sendo escrito por um dos meus escritores de terror favoritos, Stephen King, claro, que considero o Charles Dickens da atualidade”, Mary Lambert

Numa noite qualquer no longínquo ano de 1989 do nosso Senhor, me dirigi ao saudoso Cine Veneza, eu caminhava apressado e o adiantado da hora me lembrava a cada passo que aquele era o último dia de exibição do filme e para piorar, a última sessão dele na cidade. Entrei na sala esbaforido, já na metade do derradeiro trailer e eu, que tenho por hábito escolher poltronas que me deem uma visão minimamente centralizada da tela, naquele dia subi até o balcão e lá me acomodei bem perto da beirada. Segundos depois Cemitério Maldito começou a ser projetado. Naquela altura da minha vida eu tinha visto mais filmes baseados nas obras de King do que lido seus livros, apenas Christine e a coletânea de contos Sombras da Noite, já os filmes, bem, talvez todos os que tivessem sido exibidos na televisão (eita, acabo de lembrar que essa foi a primeira adaptação do escritor que vi em cinema!) e só vim a ler O Cemitério, livro que originou este filme, anos depois, além de outros, claro, mas, é o meu favorito do autor até hoje, com grandes probabilidades de eu finalmente relê-lo dada “a coisa” que se apossou de mim após eu rever o filme duas vezes em dois dias para escrever este texto. É gente, às vezes dá pra ser feliz mais de uma vez na mesma semana e até três, quando além do próprio filme, observamos a obra da diretora, neste caso.

Oriunda dos videoclipes, Mary Lambert estreara nessa área em 1984, dirigindo e produzindo vídeos das Go-Go’s, Madonna e Sheila E., e até 1989, ano de  lançamento de Cemitério Maldito, ela trabalharia ainda com Eurithmics, Chris Isaak, Rod Stewart, Sting e Janet Jackson, entre outros e outras artistas, inclusive, esse trânsito da diretora na área musical facilitou muito para que ela conseguisse não apenas uma, mas duas músicas do Ramones a serem utilizadas na trilha sonora, uma delas inédita, homônima do filme e que se tornou o maior sucesso comercial da banda, Pet Sematary, presente no disco Brain Drain (1989). A participação da diretora no filme foi chancelada pelo próprio Stephen King, que também escreveu o roteiro. Ele gostou da visão que Lambert tinha do trabalho a ser feito, tanto que não se sentia ferido em seus brios quando a diretora sugeria mudanças na história e inclusive ele também a consultava sobre isso. 

Lambert se sentiu tão confiante que ainda conseguiu emplacar no elenco o ator mirim Miko Hughes, pouco mais que um bebê na época, que viria a trabalhar em O Novo Pesadelo de Fred Krueger, sétimo filme da franquia A Hora do Pesadelo e em Spawn, adaptação da hq exitosa de Todd MacFarlane, mas, é mais lembrado por este filme e Fred Gwynne, que os executivos do estúdio temiam contratar por medo do público não o levar a sério por conta de seu trabalho mais conhecido, The Munsters, série cômica que foi ao ar entre 1964 e 1966, onde interpretava o personagem Hermann Munster. A teimosia da diretora acabou por se revelar uma das melhores escolhas do elenco, pois Gwynne domina todas as cenas em que aparece, em nada lembrando o doce e querido Hermann.

Eu gosto muito da sensação que vem em mim quando tenho que rever um filme para escrever sobre ele, principalmente por perceber nuances que por vezes me passam despercebidas. Quando visto pela primeira vez, eu com apenas dezesseis anos, ficaram em mim após o fim da sessão no cinema as impressões mais explícitas da obra: sangue, morte, ressureição, morte e morte, de novo, mas, o buraco é bem mais embaixo na tragédia que se inicia com uma pacata mudança da capital para o interior de uma família feliz composta de pai, mãe, casal de filhos pequenos e um gato que se mudam de Chicago para Ludlow, no Maine (palco da maioria das tramas de Stephen King) por que o pai conseguiu um emprego na universidade local. Ambos os adultos têm problemas relacionados à família da esposa, uma gente rica que não acredita que Louis Creed (Dale Midkif), um médico, esteja à altura de sua filha Rachel (Denise Crosby), uma mulher atormentada pelo trauma de ter acompanhado um processo degenerativo que acabou por vitimar a sua irmã, Zelda, quando era adolescente. 

Apesar de movidos pelos ventos da esperança, logo no início os Creed aprendem, através de uma ação providencial de Jud (Fred Gwynne), seu único e idoso vizinho, que o novo lar pode ser uma armadilha mortal, pois a estrada em frente à propriedade é bastante movimentada em razão dos caminhões que passam por ali diuturnamente, sempre em alta velocidade, um perigo para Ellie (Blaze Berdahl) e Gage (Miko Hughes), seus filhos pequenos. Jud o adverte sobre a necessidade de Church, o gato, ser castrado e assim se aquietar e preferir a calma do lar às aventuras no mundo exterior e para provar seu argumento, ele leva a família por uma trilha que tinha lhes chamado a atenção antes, um caminho que acaba num cemitério de animais, uma clareira na floresta onde os jovens do local enterram seus falecidos animais de estimação e onde há décadas o próprio Jud havia feito isso. Ao voltar pra casa, Ellie questiona o pai sobre a brevidade da vida de Church e Louis, amoroso, romantiza a situação, acalmando a pequena. Em seu primeiro dia de trabalho, o doutor vê um paciente, um homem atropelado e aparentemente morto, voltar momentaneamente a si e alertá-lo sobre o perigo que paira sobre a sua família, quase fazendo a nós e o bom doutor sujar as calças. 

Para a sorte de Louis, Victor Pascow, o nome do defunto, agradecido pelos esforços do médico em tentar mantê-lo vivo, se torna um fantasma camarada que agora, do outro lado da vida, quer fazer o mesmo por ele, avisando-o na mesma noite que se afastasse do tal Cemitério de Animais, pois algo muito perigoso reside por ali. O tempo passa e durante um feriado Rachel e as crianças viajam para Chicago. Na mesma noite, Jud telefona para Louis e pede para que ele vá identificar o que talvez sejam os restos de Church na estrada. Confirmado o óbito do felino, o homem confidencia ao médico que, num terreno além do cemitério de animais existe um antigo cemitério indígena abandonado onde os cadáveres de animais que ali são enterrados voltam à vida. Louis, descrente, mas também antecipando o desespero da filha, decide pagar para ver e numa jornada cansativa e perigosa, vai até o lugar e debaixo do solo duro como pedra deixa a carcaça do gato. Jud o avisa de não falar sobre aquilo com ninguém. 

Na manhã seguinte, fedendo a carniça, sujo de terra e sangue, Church aparece na garagem da casa e fora o fedor, Ellie não nota nada de diferente no animal quando chega de viagem. E é a partir daqui que as coisas se complicam muito mais, Gage é atropelado por um caminhão na frente de sua família durante um piquenique e se negando a escutar os apelos e suspeitas de Jud, Louis decide enterrar o filho no cemitério mágico quando Rachel vai passar o período de luto na casa dos pais com a pequena Ellie, que, via sonhos, é avisada várias vezes pelo fantasma de Pascow de que algo muito grave vai acontecer. Acho que a partir daqui vocês conseguem perceber a bola de neve que esses atos vão se tornar, certo? Sim, pessoas pervertendo o curso normal da natureza em prol de interesses particulares, ainda que bem intencionados, num filme que versa principalmente sobre luto, mas, que também mostra o quanto não tratar a morte com a normalidade que o assunto pede pode levar a ações equivocadas. Tivesse Louis Creed conversado com a pequena Ellie desde o início sobre a naturalidade da morte e da tristeza que nos aflige quando perdemos algo ou alguém a quem amamos, tudo o que vemos poderia ter sido evitado, mas aí os créditos finais teriam subido antes mesmo da primeira meia hora e vocês não estariam lendo isso aqui e, na verdade, Louis não é o único culpado aqui. Ao meu ver, o maior deles é Jud, que desde sempre soube dos resultados das experiências no cemitério ancestral e não contou sobre os males oriundos disso ao seu novo vizinho e amigo, sem se importar de rever desgraças similares às que testemunhara décadas antes, sendo agora a vítima uma família que o acolheu como um deles desde a sua chegada à cidade, um lugar que esperavam, mudariam suas vidas para melhor e poderiam concretizar alguns de seus sonhos, mas, os sonhos aqui são apenas vias de comunicação do além, restando apenas uma sangrenta e mal cheirosa realidade. 

Cemitério Maldito é, em seu cerne, um filme sobre verdades que não são ditas e as consequências dessas inações nas vidas dos personagens, tudo daquele jeitinho que os fãs e as fãs do terror adoram, habilmente dirigido por Mary Lambert e mesmo que não se perceba essas camadas, o filme funciona do mesmíssimo jeito, pois terror de qualidade que melhora com o passar dos anos. Vale muitíssimo a pena.





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