Castelos assombrados, casarões em ruínas, presenças fantasmagóricas, névoas densas que rondam pântanos à noite, mulheres assustadas e gritos quase que inaudíveis, são basicamente as características que formam um bom filme de horror gótico, até os exemplares mais modernos desse subgênero, carregam em sim ainda muito do contexto da época áurea do gótico dos séculos 18 e 19, influenciados, inclusive, diretamente pela literatura gótica.
Eve’s Bayou, que aqui no Brasil ganhou o título de Amores Dividios, foi escrito e dirigido pela Kasi Lemmons, sua estreia na direção, e vocês devem lembrar dela por interpretar a amiga policial de Clarice (Jodie Foster) em Silêncio dos Inocentes (1991) e a amiga de Helen (Virginia Madsen) em O Mistério de Candyman (1992), traz uma história gótica reimaginada que se passa no sul dos Estados Unidos, na Louisiana, na mansão de uma próspera família negra que tem parentesco ancestrais com o rico fundador francês da cidade. Conta-se que sua vida teria sido salva por uma mulher africana escravizada que se chamava Eve e esse ato fez com que ela e seus 16 filhos recebessem a liberdade.
De início, o filme já começa com a narração de Eve Batiste (Jurnee Smollett), falando sobre memórias e de como às vezes elas podem nos trair. Ela continua narrando em off e diz que esta é uma história de quando ela tinha 10 anos e matou o pai. Forte, né? Foi aí que o filme já teve toda minha atenção quando vi pela primeira vez, uma introdução potente que entrega horror e mistério logo de cara. A história segue com uma festa animada na casa da família de Eve, com Louis (Samuel L. Jackson) seu pai e médico da cidade, Roz (Lyn Whitfield) sua mãe, sua irmã mais velha Cisely (Meagan Good), o caçula Poe (Jake Smollett), sua tia Mozelle Batiste Delacroix (Debbi Morgan) irmã de Louis e viúva 3 vezes e mais alguns amigos e parentes. Mozelle tem o dom da visão, de prever o futuro e Eve herda também esse dom que está há várias gerações nas mulheres da família Batiste, mas ela ainda não sabe.
Já percebemos que esta é uma família privilegiada permeada por amor e devoção entre eles, como o amor de Cisely por seu pai que beira quase a possessão. Eve sente ciúmes dessa relação e no fundo sabe que não é a filha favorita dele, é quando durante a festa, ela se chateia e vai para a oficina do pai chorar. Ela adormece e acorda com um barulho, é quando testemunha a traição do pai com a amiga da família Matty Mereaux (Lisa Nicole Carson) que é casada com Lenny Mereaux (Roger Guenveur Simith) um professor da comunidade que devota admiração pela pequena Eve. Saindo do local mais chateada do que quando entrou, ela conta para a irmã o que viu e pela admiração enorme que cisely tem pelo pai, convence Eve de que ela se enganou com o que viu. Entra em cena o que nos foi apresentado no inicio sobre a não confiabilidade na memoria e isso segue sendo o mote que permeia basicamente todo a trama.
Algo desde aquele dia se quebrou em Eve e ela passa a ver seu pai com menos idolatria, percebendo uma realidade de homem mulherengo que engana a mãe e isso vai aproximando a menina mais da tia Mozelle, que passa a abrir mais ainda os olhos da criança sobre coisas da vida e sobre sua segunda visão, é quando ela explica que isso é hereditário e Eve passa a confiar mais no que seus olhos veem, enquanto presencia sua família, um exemplo de perfeição antes, desmoronar. Ela vai se entrelaçando mais com mentiras e segredos, alguns sendo descobertos e outros sendo cada vez mais escondidos. É quando ela busca ajuda numa sacerdotisa vodu da localidade, Elzora (Diahann Carroll) para lhe aconselhar a matar alguém através da magia.
Kasi Lemmons traz aqui um filme incrivelmente inesquecível que ressoa na gente de forma poderosa. Não tem como ficar indiferente quando ela conta a história de uma família rural negra e rica dos anos 60 em pela década de 90 e ainda fugindo do horror urbano de gangues e rappers que estava tão em voga na época. Influenciada pelas viagens de infância que fazia à Louisiana, Lemmons entrega uma trama que nos faz muitas vezes duvidar se aquilo que estamos vendo aconteceu mesmo ou é imaginação de uma menina de 10 anos, provando que muitas vezes a memória pode ser seletiva a depender de nossos interesses e que é algo em que não se pode confiar. A escolha pela ambientação da história não podia ter sido melhor, pois consegue passar aquela sensação de mistério, suspense, sonho, misticismo e ainda carrega as maldições atreladas a ancestralidade familiar do peso de trazer no sangue de escravizados. É um filme que se assemelha muito em temas profundos ao Beloved (1998, Jonathan Demme), inclusive da mesma época trazendo o protagonismo de mulheres pretas para uma trama gótica.
Amores Divididos arrecadou $14 milhões nos EUA e teve um orçamento de $4 milhões. Acabou se tornando o filme independente de maior sucesso comercial em 1997 e foi indicado a 17 prêmios dos quais ganhou 12. Foi uma produção bastante elogiada pelos críticos, inclusive com prêmio de melhor estreia na direção para Kasi Lemmons. Em 2018, ganhou mais reconhecimento e foi selecionado para integrar a Biblioteca do Congresso para preservação do Registro Nacional de Filmes dos EUA por ser culturalmente, historicamente ou esteticamente significativo. A Criterion lançou ano passado uma versão com 116 minutos, 7 a mais do que a versão comercial.
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