Uma mulher que tinha serpentes no lugar de cabelos, presas de bronze e asas de ouro. Trágica, solitária e incapaz de amar e ser amada. Odiava homens por ter sido assediada e odiava mulheres por ter sido transformada por uma, numa criatura monstruosa que transformava em estatua de pedra qualquer ser que olhasse para ela. Virou símbolo da luta feminista como analogia ao direito da fúria e da raiva feminina como uma forma de libertação do controle da supremacia masculina.
É tendo como base, uma livre inspiração da mitologia da Górgona mais famosa, que Black Medusa se constrói. O filme de Youssef e Ismael Chebbi coloca Nour Hajri, como Nada, em um papel melancólico e vingativo de uma jovem Femme Fatale que leva vida dupla e sai pela noite da Tunísia seduzindo homens para depois matá-los. Nada faz parte de duas minorias: é mulher e é surda. O que torna a significância de seu nome muito mais representativo de uma figura vazia ou o não-ser, a não existência.
Ela tem seu método, mas quando numa dessas noites na casa de um homem, ela conhece uma antiga adaga que pertenceu a um assassino e que implicitamente exerce algum poder sobrenatural sobre Nada. É com essa arma que ela passa agora a agir. No entanto, o que vinha dando certo em sua jornada assassina, passa a sair do controle quando Noura, sua colega de trabalho, começa a querer uma aproximação com Nada.
A maior parte da vida de Nada é mostrada durante a noite, onde frequenta lugares de musicas altas, bares e restaurantes se comunicando com as pessoas através de aplicativos de voz ou mensagens de textos. Ela é introspectiva, mas não sabemos se pela condição física ou por algum outro motivo desencadeado por traumas. Ela é bonita e consegue sair com o homem que quiser, mesmo sem esboçar muitas reações ou conversas. O inicio do filme já nos dá uma introdução do que nos espera, uma mulher fria e determinada. Sua primeira vitima é um homem que não para de falar e se encontra completamente bêbado. Ao conseguir coloca-lo na cama, Nada mostra todo seu lado selvagem e cruel golpeando o homem com um cabo de vassoura. Pela manhã, já no trabalho, Nada finge que não aconteceu nada (perdão pelo trocadilho) e o filme vai sendo construído como um quebra cabeças sendo narrado em forma de fábula enquanto vamos conhecendo a jornada de Nada durante as nove noites onde toda a trama se desenrola. De dia uma jovem solitária que trabalha numa empresa de tecnologia, à noite uma mulher sedutora, porém predatória que se vinga nos homens de algum trauma que sofreu no passado. As supostas revelações vão sendo feitas de maneira a parecer um sonho ou pesadelo, plantando a dúvida na gente.
De certa forma, Black Medusa se assemelha a outros filmes que tem como mote a vingança de estupro, porem este muito mais sutil em seu discurso moral e em sua condução lenta e sem pressa de nos dar respostas, dialogando muito, inclusive em sua estética monocromática ao Garota Sombria Caminha pela Noite (2014). Só que a solidão de Nada fica mais evidente do que a da personagem vampira do outro filme. Nada não consegue mais se conectar com as pessoas, mesmo que sua colega de trabalho insista. Ainda assim, ela é inserida nesse espiral agressivo que virou a vida de Nada, cujo fim fica para a gente, espectador, determinar se ao fim de tudo ela se tornou a figura monstruosa da qual leva o título do filme e deixou de ser a vítima vingativa para se tornar a criatura assassina, só que vítima de sua própria angustia.
Para um filme com essa temática e sendo dirigido por um homem, cujo ser jamais saberá o que é ser mulher num mundo patriarcal e na eterna iminência de sofrer algum tipo de violência, Ismael, o diretor, se mostra de certa forma sensível ao desenvolver a narrativa. Para mim, difere muito de alguns venerados nos últimos anos com o mote parecido, seja dirigido por homem ou por mulher, como no caso do polemico e controverso Bela Vingança (2020), que explora o “revenge” a partir de traumas sexuais, ao contrário da motivação de Nada, que não chega a ficar evidente e trabalha a suposição. aqui no Brasil o filme passou no Fantaspoa e agora tá disponível na Mubi.
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