#308 O Despertar (2011)




O Despertar 

2011 - Inglaterra colorido, 107 minutos

Direção: Nick Murphy

Roteiro: Stephen Volk

Elenco: Rebecca Hall, Dominic West, Imelda Staulton, Isaac Hempstead-Wright, John Schrapnel, Joseph Mawle, Alfie Field, Shaun Dooley, Nick Murphy, entre outros e outras

Tempos de pós guerra são fartos em tristeza e saudade. Nas guerras, se vão de forma trágica familiares, amores, desejos, amizades e até mesmo desafetos que alguns e algumas de nós um dia sonhavam em matar com as próprias mãos. Se morre de bala, bomba, tortura, medo, loucura, fome, desespero e até mesmo dessas várias coisas combinadas. Nas guerras, mesmo quem volta vivo, dependendo de onde lutou, deixa morto parte de si no mosaico de horrores que são esses embates e não me refiro apenas aos amputados e amputadas. Na Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918), aproximadamente vinte milhões de pessoas, entre civis e militares, encontraram o seu fim, deixando para trás outros tantos milhões de corações em pranto, uma tragédia tão imensa que, sinceramente, acredito que a palavra tristeza é pouco pra definir o que resulta disso. 

A cidade é Londres, estamos em 1921, a supracitada Primeira Grande Guerra tinha acabado há apenas três anos e a Inglaterra, assim como outras nações da Europa, é um país enlutado, terreno fértil para a crença na continuação da existência após a morte e na esperança de, talvez, poder se comunicar com pessoas queridas que se foram. Florence Cathcart (Rebecca Hall), por exemplo, pesquisa aparições sobrenaturais, mas, com o propósito de expor fraudes e charlatanismos, por que sim, desgraçados e desgraçadas que se aproveitam do desespero alheio sempre existirão, infelizmente. Florence é autora de Além dos Fantasmas, um livro tão respeitado sobre o tema, que em muitas casas o mesmo é colocado ao lado da Bíblia na estante, mas, isso é pouco para descrevê-la. Estamos no primeiro quarto do século 20 e ela diz o que pensa a quem quer que seja, usa calças, algo incomum para as mulheres numa época em que na maior parte do globo elas ainda eram vistas como animais reprodutores e/ou donas de casa e tinham acesso bastante restrito à universidades ou aos altos escalões do poder, com raras exceções a quebrar a regra por aquelas bandas, ou seja, Florence, a nossa heroína, se destaca na multidão, tem personalidade, recebeu educação de qualidade e é, como demonstra em seus trabalhos práticos e acadêmicos e na sua vida diária, absolutamente descrente das "coisas do outro mundo". 

E assim seguia Florence em sua jornada anti-embuste, quando, logo após desmascarar mais uma falsa sessão espírita, recebe a visita de Robert Mallory (Dominic West), professor de história em um internato no interior do país, que traz para ela um mistério sobre uma criança que foi morta lá muitos anos antes, quando o lugar ainda era uma residência e desde que se tornou escola no início do século, um borrão que se parece com uma pessoa teima em aparecer nas fotografias anuais das turmas. As imagens são refutadas pela escritora com uma simples explicação científica, quando então o professor lhe explica que este não é o problema e sim, a recente morte de um aluno que reportara à direção a existência de um espírito vagando pela escola. O garoto não foi levado a sério e na noite seguinte, morreu de medo ao dar de cara com o fantasma. Os outros estudantes estão apavorados e a proximidade das férias faz com que a situação possa acarretar a debandada deles, abalando as finanças e a finalidade da instituição. Certa de que existe uma explicação racional para os fatos, mas, confrontada e desafiada com passagens de seu próprio livro pelo professor, Florence o acompanha até o internato, onde conhece Maud Hill (Imelda Staulton), inspetora do colégio que, apesar de não acreditar em fantasmas é fã de seu trabalho e convencera Mallory a ir a Londres lhe pedir ajuda.

Perceberam as peças de um quebra-cabeças cuja imagem completa indica diversão? Uma investigadora do insólito se vê às voltas com um fantasma que aparentemente está a assombrar uma grande propriedade rural habitada por crianças no interior da Inglaterra! Uma trama clássica e sempre bem-vinda que sim, poderia dar errado como em vários filmes antes desse, mas, aqui não. Existem sim, deslizes aqui e acolá, mas, nos mantém curiosos e curiosas o tempo inteiro. 

O Despertar é roteirizado por Stephen Volk, responsável por Ghostwatch (1992), um falso documentário sobre fantasmas apresentado ao vivo na BBC como se verdade fosse, explodindo a audiência da mesma maneira que gerou controvérsias, pois parte da população achou pouco ético o uso de uma televisão mantida em parte com dinheiro público, apresentar falsas informações como se verdades fossem sobre um tema que divide opiniões desde que o mundo é mundo. Mais informações sobre Ghostwatch aqui, neste texto de Jéssica Reinaldo. Volk também roteirizou Gótico (Gothic, 1986), dirigido por Ken Russel, uma versão do que teria acontecido na noite em que Mary Shelley, seu marido Percy, Lord Byron e John Polidori se desafiaram a escrever uma história mais assustadora só que a do outro. Os mais famosos resultados deste desafio foram Frankenstein, de Shelley e O Vampiro, de Polidori, publicados respectivamente em 1818 e 1819, dois divisores de água da literatura de horror. Volk também escreveu o roteiro de A Árvore da Maldição, dirigido por William Friedkin (O Exorcista) além de diversos livros com o sobrenatural como tema, onde se utiliza de pessoas reais em suas tramas, gente como Peter Cushing, ator de filmes de horror, que, junto com Vincent Price e Christopher Lee, compunha a Santíssima Trindade do Horror britânico (ainda que Price fosse americano), Dennis Wheatley, escritor que teve vários de seus livros adaptados para o cinema, como Uma Filha para o Diabo (1976) e As Bodas de Satã (1968), produções da Hammer que coincidentemente têm Lee em seus elencos e Alfred Hitchcock, genial diretor de cinema com obras como Psicose (1960) e Os Pássaros (1963), entre outros, além da série Afterlife (2005 - 2006) e da minissérie O Inverno do Espírito (2015), que também têm a assinatura dele e já que estamos falando do roteirista, seria imperdoável não falar sobre o elenco de O Despertar. Temos Rebecca Hall, atriz com respeitáveis trabalhos na seara do horror como Sombras do Passado (2022) e A Casa Sombria (2020) e em outros gêneros, também. Junto com ela, Dominic West, conhecido pelo papel do Detetive McNulty, na premiada série de tv The Wire: A Escuta, exibida entre 2002 e 2008 (HBO), com sólida carreira na tv e no cinema. Junto a eles, Imelda Staulton, um dos mais gigantescos talentos existentes, como provam filmes como Vera Drake, Maléfica e A Fuga das Galinhas, entre outros, além de um jovem Isaac Hempstead-Wright, o Bran Stark da série Game of Thrones (HBO), entre várias outras gentes talentosas, todas peças do jogo de descobertas amargas que se desenrolam nas quase duas horas do filme.

A chegada de Florence ao internato, ao contrário do que esperamos, não é vista com bons olhos por alguns, que desdenham de sua competência e conhecimento, mas, acostumada que está com essas reações patéticas, não se abala e segue em frente, apenas para desejar que os problemas da escola se resumisse apenas à aparição. As relações alunos/professores, adultos/pré-adolescentes é um fiel retrato de uma época bruta, com castigos físicos, assédio moral e psicológico impostos a um bando de jovens órfãos em sua maioria, pois mortos na guerra foram seus pais, muitos deles ex-alunos. A única coisa que os une naquele momento é o medo, que coexiste junto com bullying e humilhação, num lugar onde o exercício da sensibilidade não é desenvolvido, afinal de contas, a ideia desses espaços é a de formarem pessoas que sejam iguais aos seus pais, vislumbrando o mesmo horizonte sem cor que talvez, anos mais tarde, os levassem a também depositar ali os próprios filhos e, igual aos seus próprios pais, perecerem dali a menos de duas décadas, quando eclodiria a Segunda Grande Guerra. Apesar da aparência impecável da escola, é perceptível um cenário sem esperanças e tudo o que esses garotos não precisam é da morte bafejando seus cangotes, mesmo com um futuro que, por mais distante que ainda estivesse, dentro da insignificância que somos diante do tempo, se avizinhava.

Alheia a má vontade de alguns, com o apoio de Mallory, equipamentos, artimanhas e ciências próprias para o seu trabalho, Florence começa a investigar, ao mesmo tempo em que os dramas particulares das pessoas ao seu redor começam a se revelar. Mallory, por exemplo, é um ex-combatente condecorado que sofre de estresse pós traumático e tem que lidar com seus próprios fantasmas, numa abordagem onde essas dores orbitam apenas ao redor dele na maior parte do tempo e o público apenas supõe o que se passa, num olhar válido que nos coloca na pele de personagem, já que todos e todas nós, de alguma maneira, temos nossos próprios fantasmas. Ou somos. A dor trazida da guerra não é a única coisa que o aflige, a simples visão de Judd (Joseph Mawle), o faz tudo da escola, o enoja, pois o homem fingiu ser portador de deficiência para fugir do fronte, mas, aqui para nós, quem pode culpá-lo por isso? O personagem não é trabalhado o bastante para que nuances possam ser desenvolvidas, preferindo o roteirista torná-lo apenas rancoroso e invejoso, sem razão aparente para sê-lo, encarnando uma versão física do medo que circunda o local, do mesmo problema padece o personagem Malcolm McNair (Shaun Dooley), que, igual a Mallory, também é professor na escola, um tipo de aparência edemaciada e ações tão doentias quanto a própria aparência, que desconta o rancor do que a sua vida se tornou em seus alunos. Já Maud (Imelda Staulton) é um pouco mais lapidada, supervisora chefe da escola, muitas vezes age como uma figura materna para os rapazinhos, Tom em especial (Isaac Hempstead-Wright), cujos pais moram na Índia, o que torna as visitas inviáveis e faz com que o coitado seja um dos habitantes mais solitários do lugar e que por causa disso, acaba por criar um laço com a escritora, que piedosa, não lhe oferece resistência. Ao mesmo tempo em que transita por esses e outros universos, Florence descobre que algo peculiar pode realmente estar acontecendo no internato e seja lá o que for, coloca em risco a sua própria sanidade, assim como suas certezas, que, a certa altura, sabemos ter razão de ser.

Filme de combustão lenta, onde certos detalhes podem revelar aos mais atentos e atentas parte do que está acontecendo ali, mas, a dor que guia tudo o que vemos escapa até às mentes mais argutas, uma revelação sombria e plausível, numa obra com final controverso. Um filme digno de casa assombrada, com bons sustos e uma sequência que me reservarei o direito de não especificar que, não importa quantas vezes se assista o filme, nunca deixa de ser assustadora. Revisões fazem os acertos de O Despertar crescerem na mesma medida em que "relevamos" o que percebemos como falhas, enquanto descobrimos camadas antes despercebidas. A maneira como a história é mostrada funciona na maior parte do tempo, mesmo que às vezes o timing da edição deixe a desejar, perdendo-se assim o impacto pretendido em algumas cenas. Ajuda bastante também o comportamento nada clichê da personagem principal, Rebecca Hall se aproveita de cada momento em cena para mostrar a grande atriz que é, enquanto descobre o mistério que ali se esconde. Não é um filme curto e poderia ter aproveitado melhor seus personagens, dando-lhes mais relevância e profundidade, para dessa maneira enriquecer o material, mas, isso não tira de O Despertar a capacidade de entregar o que propõe, um filme decente de fantasmas.


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