2018 – EUA/Bélgica colorido, 122 minutos
Direção e roteiro: Panos Cosmatos
Elenco: Andrea Riseborough, Nicholas Cage, Linus Roach, Ned Dennehy, Olwen Fouéré, Bill Duke, Richard Brake, Line Pillet, Clément Baronet, Alexis Julemont, entre outros e outras.
"É tudo, menos um sonho bonito", Sister Lucy
Não se mexe com quem está quieto e nem com pessoas apaixonadas. As primeiras, se estão como estão, é porque querem que as coisas continuem daquela maneira e as segundas, porque são complicadas, tudo pode acontecer quando estão por perto, inclusive nada e às vezes esse “nada” é uma rotina saudável e sem surpresas, com os dois lados cuidando um do outro e das próprias vidas, encontrando no aconchego do bem querer a paz que outras coisas desse mundo não lhe dão, e esta rotina para alguns é sagrada, até porque não consideram assim estar ao lado de quem as entendem e aceitam do jeito que são e isso, amigos e amigas, fortalece a existência.
Agora, é chato quando essa “rotina” é quebrada por que um dos envolvidos descobre que ao seu lado não será mais o lugar onde estará a sua companhia. Acontece e muito, mas, seguimos em frente, nos reconstruímos, porém, quando a ruptura é traumática a ponto de causar a impossibilidade da volta e se a separação se dá por motivo torpe e acarreta a morte do seu amor na sua frente, após o mesmo sofrer várias violências, inicia-se um grave problema com desdobramentos que não deixam nenhum dos lados envolvidos impunes, principalmente se quem ficou confirma o que sempre soube, que não pode viver sem quem se foi, não lhe restando nada, a não ser a vingança pura, simples, brutal e sangrenta.
Vejam vocês as voltas que a vida dá, Red (Nicholas Cage), é um lenhador e o terreno onde ele trabalha, cada vez mais vazio, mostra que ele é competente, ainda que derrube as árvores manejando a serra elétrica quase que com carinho, como se não quisesse que a planta sofresse, teoria que talvez possa ser confirmada pouco depois, quando voando de volta pra casa, observa o mar de árvores abaixo, com uma expressão sombria, enquanto somos embalados por Starless, música da banda King Crimson.
A sequência é intercalada com cenas de Mandy (Andrea Riseborough) e suas pinturas, obras cujo estilo caberiam bem em capas de disco de heavy metal, gênero musical caro a ela, ou em capas de livros de ficção científica, horror ou fantasia estilo paperback, edições impressas em papel mais barato e lançadas com menor custo nas livrarias. Mandy e Red são um do outro, companheiro e companheira, seres distintos que em outro universo, talvez nunca tivessem se encontrado, mas que neste, cruzaram os olhares certa noite em um bar e nunca mais puderam deixar de se perceber, passando a se completar, num entendimento impecável que versava sobre arte, planetas, o mundo ao seu redor e a opinião deles sobre isso. Ele, um corpo masculino imenso, de talho bruto, ela, uma figura esguia com cabelos muito longos e escuros e uma cicatriz que lhe adorna a face esquerda, uma pessoa de cuja aparente fragilidade emana força e sabedoria, e que, descobriremos, desde cedo conhece a capacidade humana para o mal, mas, absolutamente nada nessa vida a preparara para o que estava por vir, quando os olhos de Jeremiah Sand (Linus Roach), um ególatra manipulador, líder de uma gente sem futuro aglomerada em forma de seita mequetrefe que se auto intitula Filhos do Amanhecer a percebe na beira da estrada e se abestalha por ela.
Até aí, tudo normal, difícil não ser atraído pelo imã de várias sensações que compõem a figura dela, o problema (porque sempre existe um, sabemos) é que Jeremiah é um poço de pequenez com delírios de grandeza que a partir daquele momento decide que Mandy está destinada a ser seu par e ordena aos seus discípulos e discípulas (Ned Denenhy, Olwen Fouéré, Line Pillet, Clément Baronet, Alexis Julemont e Stephen Fraser, todos e todas excelentes) que a tragam até ele. Apesar de mequetrefe, a seita tem a posse dos Cornos de Abraxas. Uma espécie de apito que, por estar em posse de quem está, acreditamos ser um embuste e pela qual não damos nada. Este é o nosso segundo erro em relação a este filme, o primeiro é achar que ao final dele sairemos impunes, o que, para o bem e/ou para o mal, não acontece. Os Cornos de Abraxas conjura os Black Skulls, motoqueiros uma vez humanos, mas que agora são híbridos demoníacos com visual e atitudes agressivas, movidos, igual às outras pessoas do grupo, a um lote de LSD super concentrado que com apenas uma gota leva a um estado bem esquisito de iluminação e os tais motoqueiros bebem dele aos goles, além de exigirem seu quinhão de sangue, afinal, também demônios.
Sequestrada e logo depois drogada contra à própria vontade, Jeremy apresenta o seu teatro patético, levando Mandy a fazer uma merecida chacota, falando na frente de seus seguidores e seguidoras o que acha que ele realmente é, acertando em cheio os brios dele. Irritado e envergonhado, Jeremiah promove a tortura dela e de Red, que, imobilizado com arames, testemunha o seu amor arder em chamas. Este é o estopim de uma trama movida ao dito maior dos sentimentos, um amor que dá combustível às intenções de Red. Mandy, o seu norte, a estrela de Belém que lhe mostrava o caminho da esperança e que o entendia talvez mais do que ele mesmo, fora subtraída da existência de maneira covarde, fruto do capricho de um lunático e agora só lhe resta fazer com que os culpados e culpadas paguem por isso, num mergulho cor de sangue na dor da própria perda, um mergulho tão intenso e sem volta que aos poucos a realidade vai se transformando ao seu redor, tal qual as telas que Mandy tanto gostava de pintar, e munido de uma besta e um machado de desenho e tamanho amedrontadores forjado por ele, sai à caça dos criminosos, que estão em maior número e têm ao seu lado criaturas que se divertem com o sofrimento, o próprio incluído.
E por falar em sofrimento, em vários momentos do filme me peguei pensando no tipo de dor que aflige as pessoas a ponto delas desistirem das vidas que tinham antes e entrarem em seitas como as Crianças do Alvorecer. Que dor é essa que faz com que as pessoas se anulem completamente, a ponto de não perceber que estão sendo exploradas e manipuladas? Ou será que percebem, mas a situação anterior a aquela era tão ou mais degradante que eles e elas não veem problemas em continuar onde estão? Mother Marlene (Olwen Fouéré), a mulher mais velha do grupo, é humilhada por Jeremiah, que não nutre mais desejos carnais por ela, que se culpa e à idade por isso. A reação dela à morte de Mandy mostra quão aliviada ela ficou, afinal, a “concorrência” tinha sido eliminada. Apesar disso, ela tem convivência pacífica com a Irmã Lucy (Line Pillet), a outra mulher do grupo, mais jovem do que a própria Mandy e muito à vontade enquanto faz o que lhe é ordenado, por mais desagradável que isso seja para alguém, ou o Irmão Swan (Ned Dennehy), que nutre por seu líder o amor que antes não se podia dizer o nome e que igual aos seus companheiros e companheiras, é manipulado para fazer as coisas que Jeremiah, um covarde, não tem coragem.
Jeremiah (Linus Roach) é a encarnação da pessoa tóxica, absolutamente nada em seu comportamento se aproveita, ele se aproveita das fragilidades de quem o segue para viver seu delírio e ser adorado, sem nunca ter questionada as suas ações no balaio de misérias que são Os Filhos do Amanhecer. Claro, não sentimos dó dos destinos dessas pessoas, mas, é curioso observar que, às suas maneiras, eles e elas desejam a mesma coisa que seu líder, fazer com que o mundo saiba de suas existências, ainda que devotadas ao mal e guiados e guiadas por alguém que finge cuidar e gostar deles e delas.
A trama de Mandy é guiada pelo amor, mas não é um filme romântico no sentido clássico tantas vezes trabalhado no cinema, é exageradamente violento porque assim é o coração apaixonado, vai de cem a mil em segundos e nunca está na velocidade zero e tudo na maior parte do tempo é cercado de cores quentes porque, bem, culpa do amor, a desculpa perfeita para as melhores e piores intenções.
Mandy é o segundo filme do diretor Panos Cosmatos, que antes dirigiu Além do Arco-Íris Negro (2010) e após Mandy, escreveu e dirigiu um dos melhores, senão o melhor episódio da série O Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro, A Inspeção (2022). O olhar de Cosmatos tem assinatura, percebe-se em seus trabalhos a vontade de não soar ou parecer com os outros, com excelentes resultados visuais e narrativos. Nicholas Cage mesmo só aceitou aceitar participar desse projeto depois de assistir ao primeiro filme do diretor e ser arrebatado pelo mesmo, já Linus Roach, ator que interpreta Jeremiah Sand, declarou que, diferente das outras pessoas envolvidas no projeto, não entendeu nada da história na primeira leitura do roteiro, mas, que detalhes como motoqueiros meio-demônios vestindo roupas de couro pilotando motocicletas e crânios sendo esmagados com as mãos, entre outros detalhes, chamaram a sua atenção.
Sorte nossa, porque é muito difícil imaginar outra pessoa no papel, até mesmo se fosse Nicholas Cage, primeira escolha do diretor para o personagem, mas, o filme inteiro pertence mesmo à Mandy, aliás, a Andrea Riseborough, que transforma uma pessoa absolutamente comum em alguém que não se pode negar a existência, uma personagem tão forte que dificilmente escapamos da armadilha que é o olhar dela, além das reações sutis que descrevem o que não se diz sobre ela, se observada com atenção.
Disse e repito, ninguém chega ao final deste filme impune. Ou sem estar encharcado de sangue. Mandy é terror pra louvar de pé, façamos isso enquanto o mundo ainda existe.
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