Texto escrito por Clara Gianni
A rainha dos condenados, lançado em 2002, construiu uma fama própria, marcadamente dissociada do clássico Entrevista com o vampiro, de 1994: em primeiro lugar, por ser o precoce filme de despedida da princesinha do R&B, Aaliyah, ainda em início de carreira cinematográfica (tendo recebido convites para as continuações de Matrix, e contracenado com Jet Li em Romeu tem que morrer, pouco antes); e, em segundo lugar, por se tratar de uma adaptação bastante livre, pouco fiel, do livro homônimo, terceiro volume d'As Crônicas Vampirescas de Anne Rice.
Não por acaso, a película desagradou o séquito fiel de fãs da obra pela profunda descaracterização de seus personagens mais queridos, e mesmo alguns poucos acertos (como a trilha sonora carregada do nü metal em voga à época, e a atuação de Aaliyah como Akasha, a epônima rainha dos condenados) não foram suficientes para salvar aquela que, em bom português, só poderia ser considerada uma bomba.
Em linhas gerais, além do terceiro volume, a adaptação de A rainha dos condenados também segue o enredo do segundo livro, O vampiro Lestat, posto que boa parte da ação de ambos ocorre de forma mais ou menos simultânea: Lestat de Lioncourt, vampiro francês oriundo do século XVIII, acorda de seu sono profundo de quase cem anos em plena era dos videoclipes, globalização, antenas parabólicas e TV a cabo, e tenciona tornar-se o novo ídolo de um mundo niilista, já desacreditado das divindades judaico-cristãs: um astro do rock, um ídolo das massas, com clipes bombardeados pela MTV a torto e à direita.
Lestat é uma drama queen, com tudo o que o título acarreta, e nunca passou muito tempo de sua vida imortal sozinho ou desacompanhado. Se retorna ao mundo dos vivos após tanto tempo, é para receber atenção como a primadonna que de fato é, e não qualquer atenção - para além dos vampiros mais novos que desejam matá-lo por revelar os segredos do Dom das Trevas em suas letras de música, ele também deseja atrair o olhar da grande mãe dos vampiros, a “deusa” primordial de cujo sangue se originaram os demais demônios que povoam a terra: a rainha vampira egípcia Akasha, com quem tivera um encontro há muitos anos.
Li O vampiro Lestat e A rainha dos condenados pela primeira vez quando tinha uns quinze anos, mesma época em que busquei a adaptação. Nunca imaginei outro palco para a ação de um doido desvairado como Lestat que não os loucos anos 1980 (época de lançamento das obras) Há um certo clima de inocência pré-11 de setembro que ainda povoa as ruas dos EUA por onde o vampiro passeia com sua Harley-Davidson, e sua estreia no rock e nos videoclipes tem todo o clima “Video killed the radio star” que tomava de assombro a juventude daqueles tempos. Consigo imaginar os clipes da banda de Lestat rivalizando com Like a virgin, de Madonna, e Billie Jean, de Michael Jackson (eles próprios deuses, entidades televisivas que, como os vampiros de Anne Rice, tiveram de se reinventar ao longo das décadas para não cair em esquecimento), por um espaço na maratona de clipes da MTV e nos corações dos jovens. E ainda assim, com todos os seus óbvios defeitos, a adaptação de A rainha dos condenados cria uma memória afetiva muito própria quando escolhe posicionar todo este frenesi nos anos 2000.
Talvez por isso eu não assista a galhofa protagonizada por Stuart Townsend e Aaliyah como uma adaptação de Anne Rice per se, mas como uma joia independente, tão própria de seu tempo como os livros em que se baseou: com seus efeitos especiais toscos, uma estética reminiscente do industrial, e trilha sonora repleta de nomes como Korn, Slipknot e Deftones, A rainha dos condenados conseguiu sintetizar um espírito da época, uma estética de couro preto e látex (reminiscente de filmes como Matrix e Blade), uma MTV muito diferente daquela que imaginei enquanto lia os livros (mais próxima daquela que acompanhei, na verdade), nem por isso menos fascinante. É o tipo de história que já não consigo imaginar nos anos 2020, em que a aura do artista pop misterioso já se dissipou bastante com as redes sociais.
Olho para A rainha dos condenados com o carinho com que revisito certas farofas que, sabemos, não exatamente nos cativam pela qualidade narrativa ou pela performance de seus atores e atrizes, mas por encapsular um espaço quentinho e seguro para onde retornamos quando a realidade se torna um pé no saco. Quero dizer: aquele filme tão ruim que é bom.
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