#270 Tu Morrerás aos 20 (2019)


Existe na arte conceitual um artista chamado Roman Opałka, polonês nascido na França, cujo trabalho consistia basicamente em contar o tempo pintando em telas números que começaram do 1 ao infinito. Toda vez que uma tela era preenchida, ele continuava na próxima exatamente de onde parou. O nome da série de pinturas é "Detalhe" e todas as telas têm a mesma dimensão. Era uma espécie de "work in progress" e enquanto vivesse, estaria pintando seus números e assim vislumbrando a visualização do tempo e o tornando de certa forma palpável.

Trabalhando também com a questão morte vs tempo, lembro do curta-metragem brasileiro de 2002 "Morte", dirigido por José Roberto Torero e estrelado pelos maravilhosos Laura Cardoso e Paulo José. Nele, o casal faz toda uma preparação para o que eles chamam de a grande viagem. Escolhem flores, caixão, roupa do dia, túmulo  e até a música do velório. Tudo pronto, fica a grande questão: "E agora? É só esperar ela chegar?".

Essa introdução foi só para exemplificar a dor de uma mãe que tem que realmente contar a morte do seu filho. Ao contrário do artista e do casal do curta que já tiveram toda uma vida, no filme sudanês "Tu Morrerás aos 20", a sentença de morte de Muzamil (Mustafa Shehatalhe) lhe foi dada logo ao nascer por um xeque, um mulçumano mais velho e respeitado em algumas localidades. O drama de Muzamil e de sua mãe, me fez lembrar que todos nós temos uma única certeza na vida: que a morte um dia chegará. E mesmo que não seja nos dada de forma enfática, ao nascer, já estamos morrendo um pouco. De forma alguma com esse comentário quero aqui diminuir o drama e o dilema da mãe de Muzamil, que já dá como certa com data e hora marcada a morte do filho.

O diretor e roteirista Amjad Abu Alala, explora os pontos de vista de um garoto que vive os eventos e passagens da vida. De criança, adolescente, jovem e adulto. Mas, como se vive uma vida em que todos ao redor estão preparando a sua morte? Seu pai foi o primeiro a sumir e sua mãe desde que soube só veste preto enfatizando seu luto. Como se vive o luto de uma pessoa que ainda está viva?

Eis um diálogo do filme:

- Você se veste de preto mas ele ainda está vivo.

- E você sempre usa branco.

- Uso branco para chorar meu filho morto. Você chora seu filho vivo de preto. Ou a tristeza se tornou um hábito?

É um diálogo entre Sakina (Islam Mubaraki), a mãe de Muzamil e uma anciã da aldeia. Mostra todo o drama e perspectiva que ela escolheu ao viver aprisionada riscando nas paredes os dias vividos e os dias que restam de vida do seu filho, inclusive o superprotegendo e não o deixando estudar. Ela diz: "Qual é o sentido de aprender se ele tem que morrer? Por que perder tempo lendo outros livros além do Alcorão?" O filme é construído entre dilemas de vida, morte, tempo e todo o peso que a religião exerce sobre esses temas, superstições, tradições e certas crenças em detrimento da liberdade individual.  

Apesar dos esforços de superproteção, Muzamil se apaixona e conhece também Sulaiman, um homem do mundo, amante do cinema, das mulheres e da bebida. Seus encontros com o jovem rendem boas conversas e há sempre a tentativa de instigar Muzamil à vida, a experimentar o pecado, a usar o cérebro para pensar e questionar. "Você não usa seu cérebro para pensar? Só usa para memorizar palavras?" (Se referindo às leituras diárias que Muzamil faz do Alcorão). Sulaiman também o questiona: "Você pede perdão pelos seus pecados e, no entanto, nunca pecou. Experimente pecar".

Na ausência do pai, ele acaba virando a figura masculina de referência para o jovem. O homem também acaba assumindo isso e sofre por Muzamil viver preso a fatídica profecia e ver sua vida sendo moldada e influenciada pela morte. O que você faria no lugar de Muzamil? Viveria aproveitando tudo e todos ou sentaria e esperaria a morte chegar? Bom...vai lá saber como é viver na real com o fardo de um spoiler gigantesco desse, né...

Uma pesquisa rápida, mostra que esse é apenas o oitavo filme feito no Sudão. Um país que sofreu fortemente durante 30 anos um regime autoritário nas mãos do presidente Omar Hassan sendo deposto apenas em abril de 2019, inclusive, bem na época das filmagens deste filme, que sofreu alguns desafios. Enfim, mais uma bela produção vinda do continente africano e que merecia ganhar o mundo e cair nas graças do povo. 

"Tu Morrerás aos 20'' não é um filme de horror dos mais puristas, mas merece muito estar aqui por todas as questões e discussões que aborda. É um filme de 2019 que ganhou o Leão do Futuro no Festival de Cinema de Veneza e foi o escolhido para ser o representante do Sudão na categoria melhor longa-metragem no Oscar 2021. Deixo aqui aplausos também para a belíssima fotografia e música. 




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