#335 Calafrios (1975)

Quero começar falando de Calafrios pelo fim, pois acho o monólogo final da personagem de Lynn Lowry incrível e que não só dá o tom do filme, como é o princípio de quase toda a filmografia de David Cronenberg. Ela é uma enfermeira que passa o filme todo seduzindo o médico interpretado por Paul Hampton, e quando tudo já está prestes a ser dominado pelos parasitas, ela fala para ele: “Tudo é erótico. Tudo é sexual. Até a carne velha é erótica. Essa doença é o amor de duas criaturas estranhas uma pela outra que, mesmo morrendo, é um ato de erotismo. Falar é sexual, respirar é sexual, até mesmo a existência física é sexual”.

Mas, vamos à sinopse do filme. Basicamente é sobre um experimento que deu errado, ou muito certo a depender do gosto do freguês. Um cientista que mora em um complexo de apartamentos de luxo, desses que tem tudo dentro e a pessoa talvez só precise sair dele para trabalhar. Pronto, esse cientista mata uma garota, abre seu abdômen e joga ácido dentro tirando sua própria vida em seguida. Aí começa uma investigação e um médico descobre que o tal cientista estava fazendo experimentos sobre o uso de parasitas geneticamente modificados para ser um novo órgão ou servir para transplantes (alô crimes do futuro). O problema, porque sempre tem um, como diz Queops, é que a tal paciente zero, aquela que foi morta pelo cientista, transmitiu a “doença” para outros moradores via ato sexual e aí alguns deles começam a ter sinais de que estão infectados. Além disso, um dos parasitas sai de um corpo hospedeiro e passa a circular pelos canos dos apartamentos contaminando mais pessoas que vão adquirindo um tesão incontrolável e transmitindo cada vez mais os sintomas através de fluidos corporais. 

Shivers, The Parasite Murders, They Came from Within, Frisson ou Calafrios, aqui no Brasil, é praticamente seu primeiro filme de estreia e como a maioria de sua produção que veio depois, aborda muito e explora tanto a fragilidade como o potencial do corpo e da mente humana a partir de metáforas para costumes sociais. Vemos isso em Rabid (1977), Videodrome (1981), Gêmeos: Mórbida Semelhança (1988), Crash (1996) e alguns outros. É como disse lá em cima, Shivers é a obra que fecunda várias ideias de Cronenberg.

Estrelado por Joe Silver, Paul Hampton e a maravilhosa e rainha do horror Barbara Steele, Calafrios não tem tanto o gore e o escatológico de tantas outras obras futuras do diretor, o orçamento é baixíssimo e seu desenvolvimento é lento, porém eficaz. O apocalipse proposto pela trama chega devagar, mas quando chega, CHEGA! A escalada destruidora que se mistura com morte, sangue, tesão, sexo e talvez uma sátira mórbida sobre doenças venéreas, foi na época de certa forma um precursor para um tema que não havia sido abordado de uma forma tão veemente. É tipo o Corra! de Jordan Peele que aborda o racismo de uma forma tão inovadora que todos os filmes subsequentes que trazem a temática, é quase obrigatório a comparação com ele, mesmo que não tenha muito a ver. Mas, Calafrios pega carona numa época em que o mundo ainda vivia as consequências de uma luta pela revolução sexual, onde se pedia pela liberdade e em seguida a repressão. É essa sociedade reprimida que Cronenberg quer abordar. Onde desejos e fetiches são mantidos em segredos, só que quanto mais se reprime, mais virulenta fica. Isso me lembrou também o recente (pero no mucho) Corrente do Mal (2014), no qual o mal que assola um grupo de jovens em plena euforia sexual, é uma força maligna transmissível advinda das relações sexuais. 

Ao mesmo tempo, temos aquele prédio que se vendia como completamente seguro e quase isolado do mundo social lá fora, no entanto, não é que vemos no decorrer do filme. Ao ser tomado por inteiro pela doença, seus habitantes conseguem com maior alegria, se desviar e partir em seus carros em busca de uma contaminação mundial. É importante dizer que Calafrios não é um ataque a sexualidade, muito pelo contrário, se você voltar ao inicio do texto, vai ver lá no monologo que ele tem uma visão muito particular sobre sexo, vide Crimes do Futuro (2022). Ele provoca muito mais a gente como espectador e nosso conceito do que são as relações humanas e sexuais, do que seu próprio entendimento. O parasita, mesmo tomando conta daqueles corpos, seja novo, velho ou criança, vai agir de formas diferentes e explorar aquele sintoma de diversas formas explorando questões fascinantes do corpo humano, assim como os impulsos. Shivers é Cronenberg e Cronenberg é Calafrios.




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